sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

RIBEIRA - 243

RACILVA
Eu conheci Racilva no ano de 1951. o mesmo ano que conheci o seu irmão, um jovem de 18 anos ou um pouco mais que isso, o qual nós chamavamos de Deca, apesar de seu nome verdadeiro ser Francisco Canindé. Racilva era uma menina meiga e bela com todos os requisitos que tem uma menina de seus 7 anos. Graciosa, vestido comprido até após os joelhos - no meio da canela por assim dizer - risonha e encantadora mas parecida com uma boneca de um bazar exposta em uma vitrine de cristal, era desse modo Racilva. No seu reino fascinal e multicolorido, a criança mostrava o seu doce encanto primaveril. Sua mãe era uma mulher esbelta que a sua avó, dona Cecilia, a tratava por Cecí, abreviatura do nome Cecília, igual o da sua mãe. A avó de Racilva era casada com um homem dos seus 70 anos e que, na sua juventude foi Venerável da Loja Maçonica "Filhos da Fé", que ficava a rua Santo Antônio, na Cidade Alta, em Natal Rn. O seu nome verdadeiro era Melchiardes Barros, porém lhe chamavam "seu Yo-Yo" ou simplesmente Yoyo. Ele chegou a ser Veneravel da Loja entre os anos de 1920 a 1925, talvez por dois veneralatos. A sua esposa, Dona Cecília, era uma eximia costureira, função que herdou a sua filha. Podia-se dizer que Dona Cecilia, de seus 60 anos, era uma mulher por demais forte para não se chamar de gorda, simplesmente. Isso era bem ao contrário de sua filha, Cecí, casada com um Arquiteto de nome Miguel Muniz de Melo. Afora Deca, Cecí tinha mais tres outros filhos, certamente de Miguel Muniz. Eram eles, pela ordem: Ralph Stabili, o menor de todos; Marcone, o do meio e, por fim, Racilva a maiorzinha de todos sem levar em conta o rapaz cujo nome era Deca, fruto de um relacionamento que Cecí tivera, anos antes, com um capitão da Policia Militar do Estado. Quando estava com seus 17 anos, Deca ficou cego completamente, apesar de ter os olhos negros e belos. Talvez a cegueira tenha sido por causa de uma doença que o acometia quase que diariamente, sempre quando ele estava jantando: Tal sintoma pode ter sido fruto de uma epilepsia simples ou até mesmo aguda. O jovem perdia os sentidos para recuperar instantes depois. Com isso, ele sempre tinha alguém para sustentá-lo na hora em que era acometido da crise. Certa vez, uma mulher, conhecida da mãe de Deca, disse que "aquilo era espítito do outro mundo" e receitou umas bordoadas com folhas de um crote "Folha de São Jorge", um tanto comprido e duro e que, por isso mesmo, Cecí tinha plantado no quintal de sua casa.
Racilva e sua familia moravam, quando a conheci, na rua Mipibu, bem perto da casa da esquina entre a rua Mipibu e a Avenida Hermes da Fonseca. Era uma casa de calçada alta semelhante a da vizinha que, tambem tinha a calçada alta. Logo depois, a calçada não era mais elevada, como a do relojoeiro que morava ali. Sempre às tardes, Racilva brincava com as meninas da vizinhança, apesar das advertencias constantes de sua mãe para que não fosse pinotar na rua. Ele era uma criança por demais obediente e quando tinha que sair de casa sempre pedia a autorização de sua mãe e mesmo da própria avó, Dona Cecilia. Nas tardes de sol quente, Deca me chamva para irmos ao quintal, onde ele costumava cantar as músicas de sucesso daquele tempo, como as melodias de Francisco Alves, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Francisco Carlos, Vicente Celestino e tantos outros mestres da musicalidade de outrora, incluindo Pedro Celestino, e para variar, as cantoras Dircinha Batista, Linda Batista, Emilinha Borba e a pouco citada Nora Ney, que dona Cecí a tinha como a rainha da voz famenina. Quando se podia ouvir a Radio Nacional, Cecí estava de ouvido colado quando a intérprete que cantava era Nora Ney. Nesses instantes em que Deca cantava os sucessos do presente, Racilva estava deitada em meu colo, ouvindo o seu irmão a cantar com um tom gutural na garganta que ele dizia ser aquilo melodia da voz.
Às vezes eu o acompanhava nas canções e foi por Deca que aprendi a ouvir os cantores e identificá-los quem estava a cantar. Minha preferencia era por Carlos Galhardo enquanto a de Deca era por Francisco Alves, o Rei da Voz. Racilva adormecia em meu colo a ouvir as cantigas que o seu irmão entoava, mimada pela brisa suave do vento que soprava leve, vindo do alto do morro que ficava mais à frente de onde nós estavamos a deleitar o que a brisa nos acolhia, à sombra do mangueral. O céu de uma tonalidade azulada fazia com que a doce criança toda aconchegada em meus braços, firmasse em um sono cálido e profundo para que, bem mais tarde eu a levasse a sua quente e macia cama onde Racilva dormiria sem fim. E eu, por fim, acalentava o sono da bonequinha de luxo às rimas de uma canção que dizia coisas para que o seu divino e puro sono se acalentasse bem mais amplo, como se estivesse velando por inúmeros anjos que lhe visitavam ao dormir. La fora, no campo do quintal, borboletas de asas douradas, brilhando na tarde de primavera, se aconchegavam para também dormir.

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