quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

RIBEIRA - 258

ZÉ DA CARROÇA
Eu conheci José Moura quando ainda eu era um menino, seis anos de idade. Ele era mais velho que eu. Não sei quantos anos. Talvez 9. Talvez. Eu lembro quando Zé passava na frente de minha casa para buscar a "chepa" no Quartel do Exército que ficava na rua Trairy, em Natal (Rn), detardezinha. Ele e um mundão de gente vindos do Morro Alto do Juruá. Era gente demais. Gente muita. E Zé com o pessoal. Eu me lembro que Zé era de uma família que se chamava "As Caboclas" ou mesmo "Cabocas". Um pessoal fino de natureza, tão magro como um risco. Não raro, depois de uma bebedeira, eles, os caboclos, começavam uma "briga" que durava da tarde à noite. Era uma lenga-lenga tamanha que, quase não tinha fim. Quando era para pegar a chepa, um resto de comida que os soldados não queriam mais, o comandante do Quartel mandava entregar por cima do muro. Era arroz, feijão, carne, jerimum, tomade e outras coisas mais, tudo misturado, que "as caboclas" juntavam tudo em uma lata para cada família, se formando aquela ruma de gente que caminhavam de volta para as suas casas ou taperas. Quando passavam de ída, iam todos cantando, batendo nas latas. Quando voltavam, era tudo cantando modas que eu não sabia o que eles diziam. Às vezes, lá por volta de 2 horas da tarde, lá se iam eles, "os caboclos", um busca de madeira no morro do Estrondo. Entravam de morro a dentro e ficavam por lá até quando ía anoitecer. Assim, voltavam para as suas taperas feitas de taipa, cobertas de palha de coqueiro. Em outros dias, o pessoal - e Zé também - ía buscar pó de serra numa serraria de Plínio Saraiva, no cruzamento das ruas Mossoró com a Afonso Pena, no Tirol. Era a mesma cantoria de todos faziam, indo e vindo. Tinha tempo que "as caboclas" íam buscar água no xafariz de seu Artur Marinho que tinha uma vacaria na rua sem nome e que é hoje rua Tuiutí. O baticum era terrivel, com as latas em fileiras, para ver a que chegava primeiro. Depois disso, eles apanhavam água no Xafariz do Governo, existente no início da rua Teófilo Brandão. Porém, ali pagava um centavo por cada lata. Não valia a pena. Era melhor buscar no outro xafariz, onde seu Artur não conbrava nadica e nada. Assim se passou o tempo. Terminada a chepa, terminado o pó de serra, terminada a lenha do morro, Ze da Carroça só tinha um meio de vida: pegar mesmo a carroça, que era de aluguel, deixar o material do depósito do seu Levino nas casas que compravam, não raro, fiado. Levino punha fé em quem vendia, pois no final do mês ele tinha somado as compras e recebia o dinheiro. Se não passem tudo, pelo menos, uma parte. E Levino foi levando o seu negócio com Zé da Carroça, todo dia alí, pronto para fazer a entrega. E o tempo foi passando. De 1946 m diante estava o Zé tocando o burro para fazer entrega de madeira, tal como o caibro, linha, ripas, pregos, tijolos, telhas, cal, cimento, barro e tudo que o cliente comprasse. Era luta e tanto para Zé que, depois viu chegar, no "armazem" de Levino outros companheiros que chegavam para fazer entrega de material, como ele e o seu pai faziam. Teve um dia que Zé da Carroça cassou. A moça era também filha das "caboclas". Crinaura, era o seu nome Com um casamento, filho para nascer, Zé procurou construir um casebre de alto do morro de Mãe Luiza. E assim, fez. Vieram os filhos, todos raquiticos como ele e a sua mulher. E foi um, dois, tres, quatro e não sei quantos mais. Agora, por volta de 1970, já não havia mais briga como acontecia no tempo dos seus avós. Apenas discussão, e pronto. O tempo passou, os meninos creceram e veio um dia que Crinaura morreu. Foi sofrimento atroz para Zé e seus filhos, irmãos, sobrinhos e alguem mais. De um xafariz que Crinaura tomava conta, em frente à sua casa, na rua João XXIII, pouco ou nada restou. Tão logo depois veio a água encanada. E Zé da Carroça continuava o seu labor, de vez em quando tomando pinga, já um tanto alquebrado, evergado pelo jeito que lhe dava a sua carroça. Quando os trocados ajudavam, ele fazia outra morada, vendendo a casa que lhe sobrara do tempo de Crinaura. E foi passando os dias, José Moura arranjou outra mulher com quem vivia. Ela, em casa dela. Ele, em casa dele. Não brigavam por nada, nem discutia por coisa alguma. Só uma coisa restava para fazer: a carroça. Todos os dias, lá estava ele rumando com a sua carroça, levando as madeiras, a cal, tijolo, barro e telha para a freguezia do depósito. Levino já havia morrido. Ficou o filho. E Zé, para fazer de conta. Certa vez, em um mes de final de ano ele teve outro desgosto. A sua segunda companheira morreu. Era janeiro de 2009. Zé não suportou tamanha solidão. Para ele, era chegado oseu fim. Perdeu o apetite, não mais comeu e em uma noite de fevereiro, José Moura, escambichou. Morreu de morte morrida. Era o fim de um caboclo que nunca teve nada a contar. Nem mesmo do seu afazer.

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Veja também: http://nataldeontem.blogspot.com/

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