sábado, 28 de março de 2009

RIBEIRA - 276

GLAUBER ROCHA
O longa-metragem "Anabazys" surgiu em meio ao trabalho de restauro dos filmes de Glauber Rocha que vem sendo feito desde 2003 por Joel Pizzini e Paloma Rocha, filha do cineasta. As sobras de imagens inéditas dos demais filmes de Glauber vinham sendo editadas para os extras dos DVDs das obras restauradas.
Mas a quantidade e a riqueza de imagens e sons deixados por "A Idade da Terra" - assim como o interesse despertado por eles em festivais internacionais - levaram Paloma e Pizzini a transformar o material num documentário com existência independente e condições de exibição nos cinemas.
Lançado agora, poucos dias depois da data (14 de março) em que Glauber completaria 70 anos, e 27 anos depois de sua morte, "Anabazys" aborda questões cruciais sobre o último período da vida do cineasta. Elas podem ser agrupadas em dois aspectos ligados entre si: as polêmicas posições políticas assumidas por ele da década de 1970 e o impacto estético desorientador provocado por "A Idade da Terra". "E´um filme que não se pode classificar segundo as regras tradicionais, uma obra feita claramente com a idéia de que não se completa", diz o professor e crítico de cinema Ismail Xavier. "Glauber expressa todas as angústias que enfrentou na vida dele em face da história"
Ismail, que coordena a reedição da obra escrita de Glauber pela editora Cosac & Naify, diz fazer esse trabalho com "um recorte bem claro de encorajar as pessoas a assistir ao trabalho" do cineasta, sem que suas declarações políticas venham a "servir de filtro" para chegar a ele. No calor da hora, isso não foi possível.
O grande abalo político causado por Glauber, então exilado, foi uma carta escrita ao jornalista Zuenir Ventura e publicada em março de 1974 na revista Visão. Nela o cineasta defendia o apoio a uma suposta ala moderada ou progressista do Exército que conduziria a transição para um regime civil. Glauber elogiava o presidente Ernesto Geisel e o General Golbery do Couto e Silva, estrategista do governo militar a quem chamou de "gênio da raça".
"Anabazys" examina demoradamente o episódio e seus possíveis significados. "A leitura da realidade feita por Glauber era a de um artista" diz Joel Pizzini. "Sua intuição sobre política não pode ser analisada do ponto de vista teórico". Nem por isso, observa Ismail, o cineasta deixou de pagar um preço alto por suas declarações após a exibição de "A Idade da Terra" no festival de Veneza de 1980. O filme foi execrado nem tanto por sua estranheza formal, mas porque teria sido financiado pelo regime militare estaria a serviço de forças de direita. Glauber protestou veementemente no palácio do festival, com sua gestualidade e franqueza verbal caracteristicas, e tudo isso teve ampla repercussão.
"Foi uma experiencia muito traumática para ele ter feito um filme visionário numa época de crise, quando o cinema industrial americano cooptava autores como John Cassavetes e Louis Malle", diz Pizzini, citando dois dos cineastas em competição no festival de Veneza daquele ano. A tensão vivida por Glauber na época foi um dos motores da criação de "Anabazys", na medida em que faz parte das memórias de Paloma Rocha, que trabalhou como continuista e atriz no filme do pai. O "viés afetivo", nas palavras dos realizadores, e a preciosidade do material que tinham em mãos os levou a dar um tratamento glauberiano ao que de início tendia a se circunscrever ao registro histórico.
Isso significou, segundo Pizzini, "desblocar" a edição que havia sido feita originalmente para o DVD, com seu formato adequado ao menu interativo, e criar um novo filme, em que "A Idade da Terra" se relaciona com trechos de outros títulos de Glauber, além de dar ao cineasta baiano a voz do narrador. Sobretudo, buscou-se "um fluxo mais livre, mais circular. às vezes delirante" em consonância com o estilo glauberiano. Foram suprimidos os créditos de identificação - "A Idade da Terra" é célebre por não conter nenhum letreiro e quase nenhuma palavra escrita - e tentou-se incorporar alguns conceitos estético-narrativos de Glauber. como a montagem nuclear, pela qual as sequencias do filme podem ser vistas em ordem independente (o diretor queria, no caso de "A Idade da Terra", que essa decisão ficasse a cargo do projecionista a cada exibição).
"Anabazys" resultou numa colágem com a grande abrangência que Ismail aponta como caracteristica dos filmes de Glauber. Misturam-se cenas de vários filmes com entrevistas em vídeos e áudio, trechos nas aparições do cineasta no programa de TV Abertura e bastidores de filmagens. Debatem-se questões políticas, estéticas e religiosas, e fala-se muito do cinema no Brasil, pelo qual Glauber trabalhou não só como autor, mas também como historiador e articulador. Sobre o estado geral da arte e da industria, ele diz em "Anabazys' uma frase lapidar: "Uma coisa é conquistar o público; outra é explorar o público".
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