sexta-feira, 25 de setembro de 2009

RIBEIRA - 416

- CAMBOJA -
Na estrada sulcada pelas águas, cartazes ainda assinalam a presença de minas. Ela só pode ser percorrida a pé ou de moto. E ao seu término finalmente aparece Khla Khnom, literalmente o "Vilarejo dos Ursos": casas modestas de madeira em palafita, espalhadas no coração da montanha mais sagrada do Camboja, Phnom Kuln, a três horas de estrada ao norte dos templos de Angkor. Objetos de uma disputa incessante, de 1979 a 1998, entre os Khmers Vermelhos refugiados no norte e soldados do governo de Phnom Penh, os vilarejos desse agrupamento de montanhas são um reflexo do país: as vítimas vivem ao lado de seus antigos torturadores. O Camboja, envolvido desde 1998 em um processo de reconciliação e, desde março de 2009, no julgamento dos antigos dirigentes do Khmer Vermelho responsáveis pela morte de no mínimo 1,7 milhão de pessoas - um quarto da população do país - entre 1975 e 1979, nunca teve uma fase de expurgo. Então a vida continua apesar de tudo, em Khla Khnom e em outros lugares. Os camponeses se levantam cedo para trabalhar nos arrozais, e só voltam para casa à noite. Aqueles que ficam perto do barraco de madeira que serve de mercearia cheiram a álcool de arroz. No último dia 21 de setembro - (quatro dias passados) - , último dia da Festa dos Mortos, Pov Chum se permitiu um pouco de repouso em família em sua casa de tábuas soltas, preenchidas com palha. Esse ex-Khmer Vermelho que voltou a ser camponês, de pele escura e jeans gasto, tem 53 anos. Ele foi soldado, é o que afirma. E não responde se participou de massacres, preferindo insistir que "por um tempo fui cozinheiro de Ta Mok", um dos dirigentes mais sangüinários do regime comunista. Ele também teria trabalhado como emissário entre os comandantes do Khmer Vermelho. Após a perda de Phnom Penh em 1979 por Pol Pot - nome verdadeiro Saloth Sar, morreu em 1998 e nunca foi julgado - sob a pressão vietnamita, Pov Chum entrou para o exército do novo governo. Disse ele que estava em um vilarejo, os soldados do governo pró-vietnamita davam dinheiro, comida e combustivel. Como ele não tinha nada, então foi para o Exército vietnamês. Ele passou a lutar contra seus antigos camaradas, pois precisava comer bem. Ferido, Pov Chum voltou para casa e reencontrou os Khmers Vermelhos, com os quais só rompeu em 1998, com o processo de reconciliação que reintegra os Khmers Vermelhos à sociedade cambojana em troca de sua rendição. Com a paz restabelecida, Pov Chum permaneceu nessa zona onde moram tanto Khmers Vermelhos quanto vítimas de seu terror. Em seu vilarejo eles chegam a ser várias dezenas. Os moradores sabem quem eles são, porém não fazem ameaças ou insultos.. "Queremos viver tranquilamente. Quero reatar laços com minha família; parte dela não estava do mesmo lado que eu. Ainda há resistências até hoje", disse Pov Chum. No mercado, nos arrozais, nos templos, ele cruza com famílias de vítimas. "Não dizemos nada, só nos olhamos. Quando eles me veem, ainda não têm muita coragem de se expressar. Depois de 1998, eles ainda tinham medo, mas agora isso começa a se dissipar", enfatiza Pov Chum.
O julgamento de seus antigos chefes não lhe interessa, ele diz. "A guerra acabou, queremos a vida. Por que falar em vingança? O governo quer que nos reconciliemos, fomos doutrinados, a maioria de nós não sabe ler ou escrever", enfatiza Pov Chum.
Perto dalí, à beira da estrada, fica a mercearia mantida por Kong Phally. Todos os camponeses da região passam na frente, para ir até o vale. Aos 46 anos, Kong Phally é mãe de cinco filhos. Essa mulher de firmeza foi submetida como tantas outras a trabalho forçado, na época dos Khmers Vermelhos. "Eles destruiram nossa casa sem motivo; meus pais, meus cinco irmãos e duas irmãs foram todos separados", ela conta. "Eles nos fazem comer a mesma coisa que os porcos", ela se revolta, antes de dizer: "Eles mataram meu tio". Ela diz que desde a queda dos Khmers Vermelhos, trinta anos atrás, a família "tem ódio" deles. Vizinha de seus antigos torturadores, todo dia ela os vê circulando por sua mercearia. "No fundo, eles tem inveja, acham que sou mais rica que eles", diz a mulher pelo fato de possuir uma mercearia. Em seguida, ela se recompõe: "Hoje, são eles que deviam ter medo, nós não".
No campo, a ausência da televisão impediu parte da população de acompanhar as audiências do julgamento de " Douch" - nome verdadeiro: Kaing Guek Eav - chefe da prisão S-21 - Escritorio de Segurança 21 - em Phnom Penh. A S-21 era o símbolo do terror do Khmer Vermelho. Cerca de 16 mil pessoas morreram nela. Somente o rádio foi capaz de fornecer informações às regiões mais afastadas. Mas esses fragmentos de notícias são preciosos para os camponeses. "O julgamento dos líderes do Khmer Vermelho é a verdadeira vingança", comemora Kong Phally. Perto dela, duas senhoras escutaram em silêncio o relato da comerciante. Uma delas, Tom Roeum, de boca vermelha e dentes pretos por mascar folhas de bétele (especie de palmeira), conta: "Um dia, levaram meu marido para reeducá-lo, e ele nunca mais voltou".
Ao seu lado, com uma criancinha sobre os joelhos e o rosto gracioso emoldurado por belos cabelos negros, Théng Kun não segura suas palavras: "Se eu fosse homem, teria me vingado pelo que eles fizeram, não suporto vê-los qui, tenho raiva". Um dia, sob o regime Khmer Vermelho, durante uma reunião pública no vilarejo, seu marido e dois de seus filhos foram declarados "traidores". Levados à floresta, eles foram mortos sem mais explicações. Restam-lhe duas filhas e um filho. "Trinta anos depois, ainda não consigo ficar sozinha à noite. Durmo sempre na casa dos meus filhos". -
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