--- "Olá da costa d'África! Quanto queres tu para me transpor deste polo àquele hemisfério?" - perguntou Miguel Leandro ao barqueiro que estava agachado em sua embarcação, desenrolando as cordas do barco. Tomado de grande supresa pela voz eloquente de quem falava, o barqueiro se soergueu no barco, ficando mesmo quase envergado com o seu traseiro para cima e, sem entender muito bem o que ouvira falar, parguntou:
--- "Cuma, seu doutô? Pru çumitero?" - inquiriu o barqueiro, assombrado. Ao que Miguel Leandro retrucou:
--- "Se dizes isso por ignorância, perdoar-te-ei! Mas..Se é para zombar de minha alta prosopopéia, darte-ei com este ceptro - mostrando o cajado que lhe fazia companhia - no alto de tua sinagoga, pondo-te por terra mais rente que o solo pátrio". - findou Miguel Leandro.
E, José Leandro, filho de Miguel, de cabeça baixa, fazendo as contas em seu birô, sorriu a bel prazer enquanto Rapa-Coco, sentado em uma cadeira coberta com lona, de frente para José Leandro, também sorriu, do seu jeito de sorrir.
Ele - Rapa-Coco, cujo nome verdadeiro era Antônio Patrício - contara àquela estória porque eu pedira para que ele contasse, para saber a verdade do que muito se falava pela cidade que o velho Miguel teria dito tal coisa. E Rapa-Coco afirmou que era verdade, Ele, Miguel Leandro, dissera isso no porto de embarque do cais "10 de Junho" que, um dia, se chamaria Cais Tavares de Lyra, ao querer saber quanto da travessia da Ribeira para a Redinha, do outro lado do rio, ele teria que gastar para levar toda a troupe de filhos, mulher, empregada e serviçal a bordo daquele barco.
Naquela oportunidade, Rapa-Coco também contou outras estória do velho Miguel, como a de que certa vez chamara seu filho Crispin para ir ao mercado da cidade comprar alguns cuscus: "Olá meu filho Créspin! Pega-te daquela moeda de um mil reis a vai até aquela casa alta e abobadada, no centro da cidade. Por certo, tu irás encontrar em seu interior, uma senhora gorda e mal vestida, com uma bacia sobre as pernas, a mexer uma massa amarelaça, côncava e convexa que o vulgo chamam-no de "cóscus"! Traz-me para o café!".
Rapa-Coco era um homem de seus 60 anos ou um pouco menos que foi criado na casa do meu avô, Miguel Leandro, desde que era menino pequeno. Ele era de Pirangí-do-Sul, uma praia que se separa da Pirangí-do-Norte apenas por um riacho de água doce e mal cheirosa onde impera um cajueiro considerado o maior do mundo, hoje, pertencente ao município de Parnamirim. Ele veio para Natal com a sua mãe, que era lavadeira de roupa, da casa de Miguel Leandro. Por lá estavam outras mulheres e moças que cuidavam da arrumação da casa e do feitio da comida, como era o caso de Francisca que eu a conheci tempos depois. Francisca, a gente chamava de Dona Chiquinha, uma mulher de muitas idades.
O nome de Rapa-Coco surgiu por conta de que ele subia, com facilidade nos coqueiros para tirar coco e, lá, aproveitava para raspar a sua comida, enquanto a garotada ficava em baixo dos pés de coqueiro esperando que ele jogasse mais um pouco da fruta. Por comer tanta lama de coco em cima do coqueiro não tardou em levar o nome de Rapa-Coco. Isso deu muita briga, com o menino Antonio, armado de um canivete, correndo atrás de quem lhe chamava daquele apelido. Certa vez, foi na casa de tia Justa (Justina, era o nome dela), com Geraldo, filho de Justa de Oscar Marinho, correndo pelo quintal, subindo em uma magueira para escapar da sanha assassina de Antônio, porque Geraldo lhe chamara de Rapa-Coco. Foi um tumulto incrível, com tia Justa pedindo pelo "amor de Deus" que Antonio se aquietasse, pois Geraldo não o chamaria mais por aquele nome tão feio. O certo foi que durou um tanto tempo para Antônio se acalmar, guardar o seu inseparavel e belo estimado canivete e, Geraldo descer da mangueira, ainda desconfiado. Muita gente ao redor de Antonio, ele não podia se vingar de Geraldo que lhe pedia desculpa, pois não o chamaria mais daquele nome sem-vergonha: Rapa-Coco.
O certo é que o tempo passou e por Rapa-Coco ficou sendo chamado o pequeno e já grande homem. Entre outras estórias que ele contava, tinha uma por demais interessante. Ao voltar de viagem pelo sul do Brasil, onde trabalhou na Indústria de Vinhos "Luiz Antunes", e quase morreu na queda de um avião, José Leandro, por volta de 1938, troxe uma mala cheia de relógios de marca Roscof. Tais relógios eram muito bons e baratos sendo que trabalhavam apenas enquanto a corda durasse. Esse era o tempo de se dar corda em relógio, tais como Mido e Ômega. Nesses dois relógios, se podia dar corda a cada 24 ou mais horas. No Roscof, não podia se dar mais de uma vez. O certo é que ele saiu com José Leandro pelo interior do Estado, vendendo a um preço mínino esses tais relógios. Eles vendiam e seguiam em frente para outra cidade, pois não queriam ser perturbardo por ninguem ao se descobrir que a corda acabou e o relógio, também. José Leandro vendeu todos os relógios que trouxe para a alegria dos seus bolsos.
Na história de Rapa-Coco tem muita coisa a contar. Por certo, ele nunca teve o ensino completo, apesar de ler, costumeiramente, os jornais da cidade e até entender quem podia ganhar ou perder as eleições. Ele vivia na casa de tio Zeca (José Leandro),. Porém, tinha tempo em que ficava no Armazém Santa Teresa, no bairro da Ribeira, onde dormia. Era certo que, já por esse tempo, Rapa-Coco vivia embriagado. Certa vez, em um bar da Ribeira, Rapa-Coco chegou onde estava também o meu primo Jubal e se encostou no balcão. Jubal, vendo a cara dele, de quem já bebera o dia todo, perguntou-lhe se queria ainda beber:
--- Vai?! - perguntou Jubal.
E ele confirmou apenas com um sorriso e fazendo sim com a cabeça. Então, Jubal mandou Ribeiro - o dono do bar - servir um copo de cachaça para Rapa-Coco. Ribeiro encheu o copo e Rapa Coco bebeu de um gole. Por mais uma vez, Jubal perguntou a Rapa-Coco.
--- Mais?! - perguntou Jubal.
Ele, de olhos arregalados, fez que sim. Ribeiro colocou mais um copo cheio para ele beber. Após tragar a bebida, se ouviu apenas um espocar - pruuuut -. Rapa Coco estava todo cagado. Eram os outros fregueses saindo do recinto e Jubal arrastando Rapa Coco para o quintal, onde o lavou por completo, dando-lhe um banho geral. Nesse momento, Rapa-Coco caíra no embriagado sono motivado pela bebida e seu parco organismo saturado por cachaças de dias e mais dias passados. Alí mesmo, dormiu. Quanto tempo o homem ficou sem beber, não é sabido. O certo é que, naquele dia, ele dormiu mesmo no quintal do bar.
De outra vez, Rapa-Coco seguiu com Zé Leandro para a sua casa, no bairro do Tirol, próximo à padaria São Paulo, saltando do ônibus quando, ao atravessar a rua Hermes da Fonseca, um carro que vinha em direção da cidade, o atropelou. Zé Leandro só ouviu o baque. O carro pegou Rada Coco de cheio, sacudiu por cima da capota e o deixou estendido no meio da pista, inconsciente e todo retorcido. Tio Zeca deu o alarme e o veículo para a uma certa distância. O motorista correu para ver o estado da vítima e meu tiu disse na hora.
--- Leva para o Hospital!!! Leva!!! O senhor é responsável!!! - dizia tio Zeca em voz alta.
O homem segurou Rapa-Coco como quem segura algo importante e levou em seu próprio carro para o pronto socorro do Hospital "Miguel Couto". O homem foi acompanhado por tio Zeca que não perdia a oportunidade de reclamar.
--- Vai pagar! Ora se vai! Se ele morrer, vai pagar também! Mulher e filhos! - dizia Zeca.
Rapa-Coco nem tinha mulher e muito menos, filhos. Mas tio Zeca. Mas Tio Zeca já pensava em conseguir uma mulher para Rapa-Coco. E filhos, também. O certo é que Rapa-Coco ficou um mês internado no Hospital, e José Leandro dizendo para ele que a vítima precisava comer maçã, tomar água de coco e precisava de dinheiro para mandar para a sua família. Isso, levou cerca de três meses. O motorista quase que perdeu o juizo em pagar por longo tempo o caso que Rapa-Coco levou para ficar bom de uma fratura na perna. O certo, apesar do desespero do motorista, Rapa Coco recebeu todo o dinheiro que, aparentemente, tinha direito. E assim, ainda muito tempo durou Antônio Patrício, o homem que todos os da familia conheciam por Rapa-Coco.
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