quinta-feira, 1 de julho de 2010

MEIAS DE SEDA - 1 -

- MEIAS DE SEDA -
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Eram 4 horas da manhã quando dona Doca e sua filha Zilene se preparavam para sair ao Mercado Público da Cidade levando na cabeça duas bacias de flandres soldadas, cada uma com seus bolos, mungunzá, goma para fazer tapioca, massa para fazer cuscuz e por cuidado também levavam café em pó para coar no Mercado onde Dona Doca mantinha um Café ao lado de outras mulheres que todo dia faziam café para seus fregueses habituais. Com certeza, o café era de graça. Porém, a mulher tirava o prejuízo na vendas dos outros alimentos que servia a quem tomasse o café. Da casa para o Mercado era um estirão, pois as duas mulheres – mãe e filha – saíam logo cedo da madrugada e caminhava meia hora até chegar aos seus locais. Da casa de dona Doca ela passava por uns casebres pobres onde ainda àquela hora estavam fechados ou se tinha alguém, era seu Nequinho, um velho asmático que acordava logo cedo para tomar um pouco de ar. Do seu puxado se ouvia o piando e conseqüente a tosse do velho procurando se desvencilhar do mau. Todo sento dia era a mesma coisa: seu Nequinho piando e as mulheres passando dando um “bom dia” sem querer, apenas para cumprimentar o asmático. Nequinho tinha seus 70 anos, era magro, raquítico mesmo, tamanho mediano, corcunda talvez por causa da asma, roupas estragadas talvez por não puder comprar novas, pés no chinelo e um ar sombrio que sempre tem quem sofre de asma.
As mulheres caminhavam sempre às pressas, com a mãe na frente e a filha atrás conversando miolo de quartinha. Era assim de domingo a domingo inclusive nos dias Santos de Guarda quando o Mercado abria somente meia porta e fechava tudo às 11 horas. Nesses dias, funcionavam apenas o comércio de carne ou de peixe e os cafés para atender os que precisavam de alimentos de manha cedinho ou procurar alguma coisa para levar para casa. Um exemplo era a Sexta Feira Santa onde o comercio só existia do lado de fora do mercado onde se vendia leite de vaca e casos de pouca valia como tempero verde, manga, mangaba, cajus e outras frutas quase sempre da época.
Na passagem das duas mulheres por seu caminhar, elas atravessavam um longo caminho cheio de mato de um lado e de outro apenas com a passagem feita na areia pelos carros ou burros que caminhavam no local. Uma serraria existente no caminho tinha o portão preso a um muro totalmente fechado, pois o expediente no local começava às 7 horas da manhã. Para bem dizer, as mulheres quase não viram aberta a serraria onde funcionava uma marcenaria onde se fazia moveis de luxo. Elas apenas sentiam o cheiro da canela, madeira nobre, ou mesmo da imbuia, nobre também, que se espalhava no espaço. Quando elas passavam pela serraria ouvia-se apenas dona Doca comentar por causa do cheiro da canela.
--- Um! Cheiroso! Hoje está como nunca! – falava dona Doca.
A filha Zilene então sorria leve como não querendo deixar a mãe falando a sós. Do lado direito do caminho, apesar do matagal, havia uma casa feita de tijolos, quadrada, parecendo ter sido feita por algum quartel militar que não havia mais. Nessa casa pequena, parecendo casa de guarda, morava uma família que dona Doca só via tão somente um rapaz de tamanho médio, corpulento, porém não gordo, a sair com um balaio fazendo a vez de um imenso chapéu, pois cobria a cabeça e as costas. Esse moço também caminhava para o Mercado Publico para pegar encomendas dos fregueses e levar para o seu destino. Quase sempre dona Doca e sua filhava cruzavam com esse jovem.
A mulher não cumprimentava o rapaz para não lhe dar cabimento. E o rapaz não fazia o mesmo por sentir vergonha. Quando às vezes queria tomar café, sempre procurava outra banca um pouco mais distante para não fazer refeição na da mulher que ele conhecia de vista. O rapaz atarracado quase sempre fazia assim. E dona Doca nem ligava por causa disso. Era como se dissesse:
--- Deixa pra lá. Eu que me importa! – argumentava a mulher do café.
O café de dona Doca era um dos seis existentes no Mercado Público. Cada qual era separado por um muro baixo, de cerca de um metro e meio. Cada um dos cafés tinha uma largura de três metros por três de profundidade. As mulheres que tomavam conta de seus cafés chegavam bem cedo para preparar os alimentos. Quando soava às 5 horas da manhã já estava quase tudo pronto para atender a freguesia. No Mercado tinha freguês que era talhador de carne verde, - os açougueiros – de porco e de criação como se chamavam os bodes que eram depositados na noite do dia anterior por caminhões da Prefeitura. Os homens que descarregavam as carnes tinham um traje mais ou menos horripilante: cobriam a cabeça com uma saca todo ensangüentada e que lhes descia até abaixo da cintura. Mais pareciam uns monges a passear pelos quintais ou jardins dos seus conventos. De certa feita um homem disse que os monges que cuidavam do gado e dos porcos tinham o mesmo costume. Por isso, nada havia em que duvidar.
Enquanto isso, as mulheres caminhavam a toda a pressa para cuidar de coar o café, preparar os pães que um homem trazia da Padaria e deixava em cada local, tivesse gente ou não, para receber e depois passava para receber o pagamento. Para cuidar de tudo a contento dona Doca colocou uma mulher que chegava mais cedo, para esquentar o fogo do fogão a carvão e preparar as mesas em tudo e por tudo. Caminhando apressada, dona Doca e sua filha Zilene, chegavam por fim ao seu destino entrando por uma porta lateral por onde os caminhões faziam o despejo de seus produtos trazidos do interior, como manga, abacaxi, jaca e muita banana. Por isso, as duas mulheres entravam por ali, que já estava aberta para o descarrego das mercadorias do que ir sempre pelo outro lado, na outra porta lateral do lado direito onde costumava entrar os caminhões de carne.
Ao chegar no Café de Doca, como ficou sendo conhecido aquele local, a mulher desembarcou o seu carregamento que não passava de uma bacia feita de lata com bolos, mungunzá e goma de tapioca. A filha Zilene também arriou a sua tão soberba carga, enxugando a testa com o lenço que era enrolado na cabeça com o nome de rodilha e se sentou em um tamborete que estava ao seu lado. Dona Doca não gostou a atitude da filha e de imediato repreendeu:
--- Vai dormir agora, é? – disse a mulher braba a sua filha.
--- Espera mãe. Deixa-me eu esfriar da viagem. – respondeu Zilene.
--- Não vejo por que está cansada, ora! – respondeu a mulher a espanar a sua rodilha.
Lindalva que de costa estava sorriu devagar sem querer mostrar a cara. A mocinha olhou trombuda para Lindalva e sacudiu a sua rodilha em cima da mesa e passou então a desembrulhar o que estava dentro de sua bacia. A mãe por isso nem ligava para o atrevimento da moça, de 18 anos que de há muito já carregava aquele quase imenso peso em sua cabeça. Zilene não tinha namorado, apesar de assumir a sua maioridade. Filha de pai que se separou da mulher quando estavam casados a apenas dois anos de atropelos, a mulher lutando pela vida e o homem vivendo de jogatina, dona Doca se acostumou à vida sozinha desde moça, coisa de 22 anos. Quando a menina era de braço, a mãe a conduzia do mesmo jeito, levando a bacia na cabeça. Nesse tempo a vida era mais cruel e Doca percorria as feiras livres da cidade ou mesmo vendendo na Feira da Tatajuba, na Ribeira, na Feira do Paço, por trás do Quartel de Policia que ainda não era nem quartel. No local do quartel funcionava uma escola e a mulher vendia seus bolos, tapiocas e mungunzá do mesmo jeito. Era uma vida difícil a do tempo em que perambulava de canto em canto.
Com o tempo, a mulher que teve uma vida sacrificada no tempo de sua mãe em vida, tudo que herdou foi à casa de morada onde viveria até aqueles dias cruéis. Ainda moça casou com Nicanor, homem esperto para a vida e que a abandonou sem que nem por que. Uma vez, a mulher saiu de casa com sua bacia de bolos e, quando voltou, foi o canto mais limpo que encontrou. O marido tinha sumido. Comera como ele fazer dessas artimanhas a mais tempo, de passar três ou quatro dias ausentes de casa, ela nem sequer importou. Porém, dessa vez, ela foi embora para nunca mais voltar. Tudo isso por contas das cartas de baralho. Dona Doca, com uma filha de apenas dois anos, continuou a tocar a vida, vendendo os seus bolos. Nada mais tinha a fazer. Era uma vida ingrata aquela que lhe reservou o destino. Ela saía de casa logo cedo e voltava à boca da noite. Os vizinhos a olhavam e comentavam entre si:
--- Isso que é vida! – diziam os vizinhos.
--- E ainda com uma filha! – respondia outro.
--- Sendo ela me casa de novo com um homem rico. – comentava alguém de cabeça baixa.
Naquele dia era um dia como outro qualquer. De cinco e meia começaram a chegar os fregueses de fora. Ela já havia providenciado o café dos açougueiros que já estavam impacientes por tanta demora. Nas bancas de carne-verde os açougueiros tinham um ritmo marcante com o bater dos facões, afiarem as facas na pedra de carne e chamar quem passasse pelas redondezas a comprar da sua carne de primeira.
--- É dez! É dez! É dez! Vai querer freguês? – era o que se ouvia a gritar em um ritmo acelerado.
O freguês olhava a carne, levantava o patinho e o deixava cair ao dizer sem cerimônia:
--- Depois eu volto. Guarde pra mim. – dizia o comprador de carne.
A mulher das tapiocas já chegara àquela hora e se sentara quase no meio do salão em um banco forrado, pondo a sua frente à bacia de goma e um raspador de coco. Ali ficava a raspar coco enquanto uma tapioca já chegava a assar num fogão de brasa e a mulher, gorda por sinal, demonstrando boa e salutar saúde, atendia ao comprador que perguntava a ela quando estava a lhe dever:
--- É cinco. O mesmo preço de ontem. – respondia a mulher gorda de vestes brancas e touca na cabeça e sua voz chorosa.
No Café de Doca continuava a chegar gente de toda a parte. Quando ainda tinha vaga, os habitues se sentavam e teciam conversa entre uns e outros sobre coisas simples. Ou mesmo política do lugar onde eles estavam a viver. Uns diziam com ardor:
--- O coronel é forte. Ninguém toma dele! – argumentava um homem do interior.
--- É. Mas tem gente nova querendo sair candidato! – determinava outro.
--- Duvido que vá a frente. – motivava um terceiro.
Assim a conversa entre os que estavam a trocar idéias continuava horas a fio. Até que o mungunzá saísse como pão e um cuscuz. O café era de graça para quem estivesse a comem de tudo que havia. Entre um falar e outro chegou ali um velho conhecido de dona Doca: seu Jubal. Esse era um freqüentador assíduo onde tudo o que consumia ele pagava. O seu canto sempre estava reservado por dona Cora onde pessoas estavam já por vez esperando há algum tempo. Jubal era um homem que tinha negócio em seu capinzal, próximo a linha do trem na Rua Ocidental de Baixo bem perto da feira do Paço. Por isso mesmo, Jubal chegava cedo da manhã, cinco e meia da manhã quase sempre, tomava café com cuscuz, mungunzá, tapioca e pão fresquinho. Depois disso, ele levava um tempo de conversar até chegar as seis de meia, hora que ele já tomava o seu rumo em direção ao trabalho.

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