sábado, 4 de setembro de 2010

DANÇA DAS ONDAS - 10 -

Susan Sarandon

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A mulher bem trajada era Dona Rosa, cozinheira responsável pelas refeições servidas durante o dia e a noite também, para os alegres patrões. Rosa já estava naquela residência desde o tempo do senhor Dumaresq. Esse homem, feitor do casarão, morreu a alguns anos de problema cardíaco, deixando a mulher, dona do Carmo, duas filhas e um filho. Das filhas, essas tinham casado e viajado para outros Estados com os seus respectivos maridos. Um deles era médico e o outro era da Marinha. Todos estavam passando bem. Em casa, ficou o menor dos três, Honório Dumaresq. Além de Rosa, mulher gorda por demais, tinha uma empregada, filha de Rosa, de nome Catarina. A moça era dos seus vinte anos de idade. Para sossego de sua mãe, não tinha namorado. O pai de Catarina trabalhava no sítio fazendo e todo o sérvio que precisasse da iluminação da casa ao encanamento de água era ele o feitor. O rapaz, Honório, tinha o costume de brincar com seu Raimundo dizendo:


--- Ele é do tempo do “ronca”! – caia na gargalhada fazendo o mesmo o seu Raimundo.
--- É. Sou do “ronca” mesmo! – sorria seu Raimundo, homem de sessenta anos.

Na ajuda de algum serviço eventual, Dona do Carmo costumava chamar um pedreiro daquela região de nome Denilson, homem casado e pai de três filhos todos ainda pequenos, sendo uma menina e dois meninos. Esse homem aparecia às vezes, apenas quando havia o que fazer.
Damiana não teve oportunidade de ver, quando chegou, a moça Catarina, filha de dona Rosa. Isso era mais um caso a lhe chamar a atenção. Se Damiana foi morar na casa de Honório, com certeza ele queria fazer com ela o que precisava fazer. Disso, Damiana tinha total certeza, apesar de Honório não lhe ter falado. Outra coisa: em que compartimento do solar eles teriam encontros, ela não podia saber. Apenas notava que o local era um casarão. Com certeza devia ter vários cômodos vazios. Em algum dos cômodos era o mais propício para se encontrar. De inúmeros acontecimentos como esses, ela mantinha a sua mente ocupada como se quisesse decifrar tudo em cima da hora.

--- No próximo domingo eu e você vamos a Missa. – relatou a mulher do Carmo com bastante afago para Damiana.
--- Missa? – perguntou a jovem que acabara de chegar a sua nova moradia.
--- É. Missa. Você não vai à Missa? – perguntou dona do Carmo à mocinha.
--- Fui algumas vezes. Na minha terra o padre vai apenas aos dias de Festa da Padroeira do lugar. Nossa Senhora do Amparo. Quando havia festa eu costumava ir. Mas faz tempo que não vou a Missa. Eu morava no sítio. Longe da cidade. Por sinal, cidade muito pequena. – relatou Damiana a sua nova dona dos seus passos.
--- Aqui tem Missa aos domingos e dias Santos de Guarda. E da Padroeira também. Você vai ver o que eu tenho de roupa para que possa mudar. Vestido lindo, feito da mais pura seda existente aqui. Calcinhas. ... Vai pra lá rapaz! Não te interessa isso! – reclamou a senhora ao ver que o filho estava presente ao local. Honório saiu da sala achando graça.
--- Está bem. Está bem. Estou indo! – saiu Honório achando graça.
--- Ele é um bom rapaz. Falou do Carmo a mocinha Damiana. - a moça achando graça também.
--- Ele é engraçado. – sorriu Damiana e calou prestando atenção á mulher.
--- Mas enxerido, que só ele. – disse Do Carmo sem cerimônia.
--- É coisa de rapaz. – relatou a moça.
--- É. Mas vamos nós. – explicou Do Carmo.
E a mulher fez experimentar a combinação, o vestido, as calcinhas, os sapatos e tudo mais. Ela ficou alegre com tudo aquilo que fez, pois daria certo, parecia ter sido feito sob medida. Após esses experimentos, a sopa, café e pão com bolos e bolachas tudo feito em casa – menos os pães – a mulher convidou Damiana para ir ouvir umas histórias do tempo antigo quando o seu avô morava num local distante daquele que ela vivia. E a moça ainda com sono da bebida que entornara no almoço chegava começar a cochilar. Honório, que lia um livro de História, de quando em vez, sacudia seu pé para despertar a mocinha. Eram dez horas da noite quando dona do Carmo chamou Damiana para dormir dizendo que o quarto por ela reservado era um dos vinte e um quartos que tinha a mansão. Com isso, a moça estremeceu de medo, pois teria de cuidar de tudo com o mais esmerado capricho.
No dia seguinte, todos estavam de pé, inclusiva Catarina cuja ocupação era a de por a mesa enquanto a sua mãe cuidava dos afazeres domésticos na cozinha. O seu pai, Raimundo, já estava no fim do quintal bem amplo. As duas moças se olharam e Catarina fez um leve riso para Damiana e perguntou, de repente:

--- Você é de onde? – perguntou Catarina enquanto punha a mesa.
--- Do interior. – respondeu Damiana procurando ser dona da situação.
--- Qual interior? – perguntou de novo Catarina.
--- De um sítio. Riacho. É o nome do município. – respondeu Damiana.
--- Riacho? Não conheço essa terra. Não tem outro nome? – voltou, a saber, Catarina.
--- Não. É Riacho puro e seco. – rebateu Damiana.
--- Que nome. Riacho! Nunca nem ouvi falar. – rechaçou Catarina meio assombrada.
--- Antigamente o povo dizia que se chamava “Panelas”. – sorriu Damiana.
--- Esse é que é ruim. Panelas? Piorou! – sorriu Catarina.
--- Eu moro num sitio lá pras brenhas! – respondeu Damiana.
--- Brenhas? – recusou em aceitar Catarina.
--- É. Longe da cidade. Brenhas. Longe. – respondeu Damiana sorrindo.

E a moça caiu na gargalhada quase sem parar assombrando até dona do Carmo.

--- Que é isso, menina? Ela é do interior. – respondeu com olhar severo a mulher.

Catarina parou de gargalhar e Damiana ficou séria como se aquela fosse uma advertência para todos os que estavam à mesa. Honório já havia saído, logo cedo da manhã e não presenciara a repreensão dita por Do Carmo à sua empregada. Com o terminar do café da manhã, Do Carmo chamou Damiana para aprender a ler, pois ela observara, com efeito, que a moça não sabia ler aos contentos. E então procurou a cartilha para orientar do que a mocinha podia saber ler. E perguntou se ela sabia algo como o alfabeto:

--- Sei. Na minha infância eu aprendi a ler, escrever, contar e até historia e outros assuntos que se ensina nos Grupos. Não sei ler, como a senhora, mas o que sei dá para o gasto. – respondeu Damiana sorrindo.
--- História! Esse é um assunto muito profundo. Vamos ver: você acredita em Deus? – perguntou Do Carmo.
--- Creio, sim. O Soberano entre todas as coisas. Eu creio nele. E em Jesus Cristo, seu filho. – respondeu a moça com orgulho.
--- Ah bom. Já é alguma coisa. Mas história não se resume apenas a esse aspecto. Envolve muito mais assunto. Se eu for falar, nem adianta. Por exemplo: o Brasil, você sabe de algo? – perguntou Do Carmo experimentado o saber da moça.
--- De algumas coisas, eu sei. Não sei os nomes das pessoas. Mas, isso eu posso aprender. – relatou a moça com certo temor.
--- Isso é bom. Nomes, datas. E os negros. Esse é um caso importante. Você sabe com relação aos negros, mulatos, índios? –perguntou a viúva com olhos bem abertos.
--- Na minha terra tinha um grupo de negros que se reunia toda a semana para contar sua história. Porem eu nunca soube do que eles contavam. – falou Damiana.
--- Tem os grupos de negros, como tem as famílias de braços, mulatos e índios. Você parece ser branca. Porém bom por trás você tem um pouco de sangue negro. Você já é uma mistura de raças. Entende agora? – indagou a mulher.
--- Entendo sim. A minha mãe era branca, branca. Mas o meu pai era moreno. Tinha cabelos bons assim como o meu. Mas era moreno. – sorriu a moça.
--- Isso é miscigenação. – sorriu do Carmo ao explicar tal assunto.
--- É o que? – estranhou a moça com tal palavreado.
--- Não se espante. É normal isso. Eu, por exemplo, tenho um sangue branco. Não é o sangue ser branco. Mas a minha origem. E então, eu me caso aqui com alguém de outra espécie, cujo sangue é de uma pessoa de cor, pessoa quase negra, um moreno, por assim dizer. Então, a minha prole herda o sangue mestiço, ou seja, misturado. Um branco e outro negro. É como uma bebida que se faz. Você pega a uva, que é cor de sangue, e mistura com água. No fim você não vê a água. Só o vinho. Porém, se misturar uma quantidade maior de água, você já verá o vinho quase branco. É isso que faz a mistura do sangue. Entendeu? – perguntou a mulher.

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