domingo, 30 de agosto de 2009

RIBEIRA - 389

- LAURA -
Certa vez, eu passava em frente à casa de Laura, uma menina dos seus 10 anos de idade. Era a idade que eu tinha, também; 9 ou 10 anos, mais ou menos. Ela estava na janela de frente da sua casa e me fez um aceno dizendo:
--- Menino engraçado!!! - com sua voz alegre e sorridente.
Eu olhei para Laura e baixei a cabeça, como olhando para o chão, e rumei para a bodega de seu Chiquinho. Minha mãe tinha me mandado comprar - fiado, por sinal - açúcar, leite, café e pão. Era um dos tempos que as meninas diziam qualquer coisa para mim e aquilo, sem duvidas, até que me deixava acabrunhado. De pele alva, sem mostrar tanta cor - de sangue -, corpo esbelto, cabelos compridos baixando à cintura, olhos miúdos de cor castanha, mãos como de veludo era tudo que Laura ensinava ter. Ela estudava em um Grupo perto de sua casa, no mesmo turno que eu, porém em sala separada. Sempre que eu passava em frente à sua casa, ela soltava a mesma pilhéria. Eu nada respondia, com certeza por vergonha. Como se dizia antigamente: encabulado. Era o que eu sentia pelo modo como Laura me cuidava.
Nos fins de semana, eu ía à matriz de Santa Teresinha, onde Laura estava com sua mantilha branca cobrindo sua cabeça que descia bem perto da cintura, um pouco mais abaixo. Eu, ela e vários meninos lá estavam a esperar pelo Monsenhor Landim, pároco da Igreja. O sacerdote organizava a fila. De um lado ficavam as meninas. Do outro, os meninos. Nós íamos nos confessar para poder comungar no dia seguinte, na Missa das 7 horas do dia de domingo. Para mim, era um tremendo sacrifício passar aquele tempo sem poder pecar. Todo cuidado era pouco ter que cumprir os dez Mandamentos da Lei de Deus e mais sete da Igreja. Certa vez, eu ouvi o padre gritar quando um garoto se confessava:
--- MENIIIIIINO!!! - era a voz do padre, zangado.
Eu passei a informação para um colega que estava esperando a vez:
--- Esse deve ter cometido uma falta bem grave! Um pecado "cabeludo" - e sorri baixinho.
O colega também fez um sorriso aperreado e me dizendo que se tivesse outro padre para ele se confessar, bem que ía, pois o pároco parecia muito brabo. Mas não tinha outro e o sacrifício era esperar. De minha parte, eu tinha uns pecadinhos meio assombrosos. Não adiantava não dizer por que Deus sabia de tudo o que eu tinha guardado. E ficava nesse dilema: dizer ou não dizer.
Do lado das meninas, eu olhava a fila que se estirava para além de vinte garotas. Era um sacrificio e tanto para o sacerdote ter que ouvir toda aquela gente miúda. E depois, tinham os homens e mulheres, moças e rapazes. As moças eram as mais "cadavéricas", dizia eu ao meu colega. E o garoto sorria um tanto amargo, pois sentia que a sua vez estava para chegar. As mulheres, essas nem se fala. Matronas gordas e feias. Até que apareciam umas um tanto bonitas entre o meio das feias. Essas, contudo, não eram tanto "matronas" como as que estavam rezando, mortificando os seus pecados. Elas deviam ter casado há pouco tempo, pensava eu a bisbilhotar o templo sagrado da comunidade. E no fim do meu pensamento, sorria baixinho e não falava a meu colega de fila o que eu estava a imaginar.
No domingo, a Igreja estava cheia de gente. Homens, mulheres, rapazes, moças, meninos e meninas sem falar nas senhoras de idade avançada e nas belas mocinhas bem quietas, como demonstravam ser por sua junventude de beleza, feiura, meiguiçe, modesta ou de fino trato.
Um cheiro de rosas, alfazemas, colônias de doces fragrancias, as mais diversas existentes, óleos exóticos e entre os homens o cheiro incandescente da brilhantina e, nos sapatos o odor da graxa que eles passavam para deixá-los um esmero encantador. Eram assim, todos os domingos e dia de festa, principalmente na festa de Santa Terezinha, padroeira da paróquia. Lá fora do Templo, um bêbado fazendo caretas e improvisando um sermão entre os jovens bem trajados que não entravam na Igreja, pois diziam que dentro da Matriz fazia bastante calor.
A Missa teve início com todo aquele aparato. Mulheres bem vestidas, homens de terno de gabardine, mocinhas delicadas com seus vestidos bem ornados, rapazes de camisa de mangas compridas e de gravatas descendo até o cinturão, meninas impacientes por causa do calor que fazia dentro do templo, vestindo saias compridas, meias, sandálias e cabelos arrumados; meninos trajando roupas domingueiras e eu, vestindo um uniforme que parecia um infante da Marinha, todo branco e botões amarelos feitos de metal. Era a roupa que me agradava bastante, pois foi com ela que eu desfilei na Parada da Independência pela mesma escola que Laura estudava. Eu me sentia como um capitão de esquadra naval com a minha túnica soberba e reluzente por força da goma, só me faltando o quepe para ser completo. No cabelo, bem untado, era só brilhantina, colando fio por fio na cabeça. Eu nem me importava com ninguém. A não ser, com a divina e cândida Laura no meio de toda aquela gente, tendo ao lado a sua mãe e o seu irmão.
A missa era toda rezada em latim onde o sacerdote com suas vestes cor de ouro dizia coisas que eu não entendia. Por sinal, de nada eu entendia, a não ser ajoelhar e levantar, pois toda áquela gente já fazia o que o sacristão dizia com o sinal da sineta. Esse sacristão, eu o conhecia muito bem, porque, todo sábado ele estava lá olhando para nós, os meninos pecadores. Para mim, aquele garoto não pecava, pois ele era o sacristão do padre. Ora! Se ele era o sacristão, então não devia pecar, eu pensava. Um sacristão menino devia ser um quase padre. E se não era padre era porque ainda não tinha crescido. Era um padre-mirim. Era tanto que eu o olhava com o olhar desviado para não dar na vista.
Após certo tempo, quando o sacristão badalava a sineta, vinha o padre - Monsenhor Landim - para falar aos presentes coisas que eu sempre o ouvia discorrer. Era um tempo e tanto de falação que me deixava com sono. Laura, quieta, não se importava com tudo aquilo. Isso eu notava, pois de quando em vez eu tecia a vista para o outro lado do salão onde ela estava. Para todos os efeitos ela estava esplendorosa, quieta, calada sem se mexer para um lado ou para outro. Laura estava tranquila em meio a toda aquela gente que ouvia o padre falar sobre Deus, a Santa Madre Igreja e também, a Santa Terezinha, dos tempos que hão de vir e tantas outras ocorrencias que tínhamos que nos preparar para tal fim.
Depois do sermão, vieram às orações em silêncio até a vez de o padre dizer em latim frases que para mim não sabia o que elas diziam. Depois de tantas rezas, sempre baixas, chegava à hora da comunhão. Os meninos e meninas na frente, depois eram a vez dos rapazes e moças, em seguida as mulheres e, no fim, os homens. Todos separados. Homens e mulheres em dupla fila. E veio o tempo da comunhão que nós recebiamos, a Hostia Santa depositada pelo sacerdote em nossas bocas para, em seguida, irmos, calados, contritos razar um Pai Nosso e três Ave Maria, pedindo pelos nossos parentes. Mãe, pai, tias, tios, os que já morreram e os que tinham nascidos há pouco tempo, os amigos e inimigos, os nossos vizinhos. Enfim: por toda a gente que conheciamos. Era essa a nossa penitencia.
Rosas espalhadas por toda a Igreja. Brancas, róseas e de tantas outras nuances enfeitando os bancos e o Altar de Santa Terezinha onde se podia observar grandes velas acesas iluminando todo o ambiente. Com mais um pouco de rezas, estava no fim a Santa Missa quando, então, o sacerdote dizia em latim: "Ides em paz". E todos saiam contritos do Templo, pegando o rumo de suas casas. Aquele era um domingo de sol. A gente se espalhava por seus caminhos e, com pouco tempo, ninguém mais era vista nas ruas. Eu segui com meus colegas de classe para a minha moradia. Alé chegando, me despedindo dos colegas, entrei e fiz logo o desjejum, ficando com mais um tempo sentado na janela da frente da minha casa. Olhava quem ia e quem vinha passando junto a calçada, calados, pensativos como ovelhas saídas do cercado.
Fazia pouco tempo que eu voltara da Missa. E nesse instante eu vi um aglomerado de gente, correndo na outra rua, vozes, choros, ataques de pessoas. Gritaria sem fim. Alguém dizia:
--- A menina morreu!!! A menina está morta!!! Chama a ambulância!!! - diziam vozes.
Eu, nada entendia do que se passava. Era gente muita. Minha mãe acudiu à porta e perguntou de repente, como se nada soubesse:
--- O que é isso?! - perguntou a minha mãe.
Foi tempo para saber. Um longo tempo. Eu desci da janela onde estava e corri em direção à rua onde as pessoas se aglomeravam. Quando dobrei a esquina vi um monte de gente apinhada em frente à casa de Laura. Tive medo! Meus joelhos estremeceram! Ivan, um colega que morava mais próximo a Laura foi quem me chamou para dizer, espantado, com olhos esbugalhados e voz trêmula:
--- Laura morreu!!! - disse Ivan, chorando.
--- Como?!!! - perguntei eu com meus joelhos em chocalhos.
--- Laura!! Laura!! Ela se enforcou!!! - comentou Ivan em lágrimas.
--- Enforcou?!! - voltei a perguntar, espavorido.
--- É. Deixou um bilhete na cabeceira na cama! Dizia que fazia aquilo porque estava em comunhão com Deus e podia entrar no Céu. Passou a corda da rede no pescoço, estirou em um caibro da casa e morreu !!! - concluiu Ivan em eternos prantos.
Foi um acontecimento terrivel, aquele. Por muito tempo o pessoal comentava o caso da menina que morreu após ter feito a comunhão do domingo, na Igreja. Ninguém soube dizer, tempos depois qual a razão de tudo aquilo e o que motivou Laura a por termo à própria vida. Apenas se sabia que a menina morreu após ter vindo da Missa. Um caso estranho, aquele, que motivou o pessoal da cercania a indagar por que a garota quis ir para o Céu tão cedo assim. Nunca se obteve resposta para tal caso. Menina viva, alegre, sorridente, parecia confiante, até, morreu envolta em mistério. Tal fato me perseguiu até os dias de hoje sem nunca eu ter recebido alguma explicação para o ato tresloucado. Hoje, já velho e encanecido ainda procuro saber o que levou àquela menina a cometer tão torpe suicídio.
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