quinta-feira, 26 de agosto de 2010

DANÇA DAS ONDAS - 1 -

Kathryn Grayson

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Adélia chegou ao trabalho precisamente às oito horas da manhã, onde alguns laboriosos já estavam desde as sete horas no serviço diário. Para alguns, o trabalho começava às sete horas. Para outros, o expediente era um pouco depois. Entre esses funcionários, estava Adélia, moça franzina, alva de cor, cabelos encaracolados chegando até aos ombros, sorridente para todos brincalhona para alguns, atenciosa para quem pedisse algo que lhe estava a faltar no seu birô de trabalho. Essa era Adélia, quase todos os dias, pois não havia expediente na repartição apenas aos domingos, dias santos e feriados. No período noturno, Adélia juntava seus livros e caminhava para a aula em um colégio da Cidade. Antes de partir, costumava dar o seu adeus a cada um com um alegre tchau como era costume fazer. Isso, após um dia inteiro de trabalho onde, para muitos dos seus colegas era tão pouco ainda. Porém, para todos Adélia de imediato chegava com o que pedisse: caneta, papel, fotos, releases, entre outras coisas, como telefone a chamar para algum lugar. Assim, a jovem moça estava a trabalhar em seu primeiro emprego. Para todos os que no escritório trabalhavam a moça era a primeira entre todas as moças a ser cumprimentada.

--- Olá Adélia! –

--- Como vai Adélia? –

--- Algo de novo Adélia? –

--- Bom dia Adélia! –

Era assim que todos a cumprimentavam. Prontamente, ela então respondia. No Gabinete do Diretor ou da Presidência era a mesma chamada para quando Adélia caminhava ao local. E então, a moça fazia o percurso de ida e de volta. Acostumada ela estava, pois de onde vinha, era comum se oferecer ajuda a alguém. Adélia morava no bairro de Belém e trabalhava no Bairro Alto onde o comercio pululava noite e dia. De dia era o comercio convencional. À noite era o comercio da prostituição. Para Adélia era um temor trabalhar em um escritório que fechasse suas portas além das seis horas da tarde. A Rua do Carmo era a principal do comércio, bares, restaurantes e encosto dos ébrios os quais por ali bebiam e adormeciam. Noites vagas translúcidas e serenas. Nas tardes de frio de inferno onde o ameno resedá floreava, Adélia se cobria com o seu véu de labirinto de cores brancas e passava ligeira por entre os transeuntes que deixavam também seus gabinetes de trabalho ou os seus enormes balcões de despachar consumidores até mesmo de última hora.

Na hora em que largava do trabalho, deu-se o mesmo o que havia ocorrido quando Adélia chegou completamente molhada pelo aguaceiro que caía na cidade devido a um imenso temporal. Aliás, na boca da noite, a situação foi mais grave ainda. Com o dia se acalmando, até o sol surgindo, para Adélia aquele era um dia plenamente normal depois do banho que ela levou na parte da manhã. Porém, não foi assim. Às seis horas da tarde, o bairro Alto já estava alagado por uma tempestade de verão. Os veículos eram cobertos pelas águas que chegavam a medir dois metros de altura, afetando tudo que encontrava pelo caminho. Casas naufragadas no seu primeiro solo ou solo térreo. Bombeiros tiravam as pessoas por botes ou helicópteros. Alguns chegavam a atravessar o aguaceiro fazendo uma corda humana; um na frente e outro atrás e assim por diante até chegar a um canto onde desse para passar. A mulher gritava por socorro, pois a filha estava sendo arrastada pela caudalosa enxurrada. Ela temia pela vida de sua filha:

--- SOCORRO! ACUDAM-SE! A MINHA FILHA!!! – gritava ao desespero a mulher enquanto a correnteza levava a filhinha, mergulhando a cada ponto do caminho das águas em correnteza. O homem caiu na água e nadou até conseguir pegar a menina. Levantou-a acima da cabeça e gritou para a sua mãe e aos que estava na fila de gente fazendo a corrente para puxar o desesperado homem:

--- Peguei. Está aqui! – gritava o homem, nu da cintura para cima.

A mulher vibrou de contentamento e ao desespero com um pouco de tempo tomou a filha nos braços sempre a chorar. E tudo isso Adélia via em pânico, ao desespero. Notava-se que a moça estava bem agasalhada, com uma capa por cima do vestido e galochas que lhe cobriam até o meio da canela. No entanto, o frio fazia desespero com todo o efeito possível. Três prostitutas se encostaram ao balcão do restaurante grã-fino onde qualquer um se abrigava e disseram;

--- Hoje não dá nem para o café. – disse uma a sorrir tiritando de frio.

--- É o que você pensa! Hoje estão como loucos! – falou a outra em amplas gargalhadas.

Diante de tais comentários, Adélia se afastou para outro local do restaurante e fez uma cara de quem não aprovava tal atitude das damas. E essas sorriam para qualquer um que ainda assim passava por perto apesar de saber não ser aquele o local de preferência das damas. Em um tempo, uma dama perguntou ao garçom se podia servir uma dose de uísque para acalmar os ânimos. O garçom, tipicamente homossexual, olhou a dama e levantou a cabeça, dando rabisca e saindo do local sem dizer coisa alguma. Com certeza, desta forma estava dita que não podia servir doses as mulheres desacompanhadas, principalmente as damas da noite. Com isso, as três damas gargalharam ainda mais. Do lado de fora o frio e a chuva caindo sem cessar enfeitava a paisagem langorosa na qual o tempo se fazia presente.

Duas horas de espera para o tempo melhorar. Já não chovia mais. As águas turbulentas se iam escoando rua a fora até chegar do rio do Algodão e daí levadas para o mar. Adélia já não estava mais no restaurante. Ela, então, foi para o ponto do bonde. Com a agitação das águas baixando no seu topo, o bonde voltava a circular, pois era garantida a passagem do transporte coletivo. Nesse espaço de tempo, eram oito horas da noite ou coisa assim. Os garçons com as suas calças levantadas até o joelho ajeitavam os salões colocando mesas e cadeiras nos seus devidos lugares. O temor que atrapalhou a moça cedia lugar ao tremor do frio inquietante. As damas da noite voltavam a circular cheia de viço. Era a troca do serviço diurno em igual pelo noturno. Quando o Bonde chegou ao seu ponto de parada, gente molhada, conseqüência do aguaceiro, Adélia embarcou, temendo por ao chão um pacote contendo pães que o homem levava para alguém de sua casa, com certeza. Quase cheio, o Bonde largou até a parada da linha mais a frente onde embarcaria mais gente encharcada. Era assim que chegava ao fim aquele dia de horror para todos os que trabalhavam no Bairro Alto da Cidade que de Alto somente tinha o nome, pois ficava na parte baixa do Comércio onde a vida fervilhava então durante noite e dia. No local onde Adélia morava, o Bairro de Belém, a situação não parecia tão normal assim. Faltava luz elétrica no local, com as luminárias das ruas às escuras e com certeza das casas também, pois um curto circuito deixou tudo embaciado. Depois de uma hora de viagem para Adélia, o Bonde que trafegava aos trancos e barrancos já nem podia seguir viagem, pois a falta de energia afetara igualmente, toda a linha de energização. O transporte teve parar muito antes até onde havia força, pois no local do fim ou quase fim do limite já não podia mais chegar. Os poucos ocupantes do transporte saíram a pé, subindo morros de areia e de lama até atingir o Bairro do Belém, onde tudo era escuridão. Para poder chegar a sua moradia a moça teve que enfrentar altos e baixos caminhando por uma fila indiana de gente que prosseguia até as suas residências. De hora para outra ela olhava para o céu certificando-se de que não havia mais perigo de chuva. Com a falta de energia urbana, se podia ver um céu coberto de nuvens apostando que estaria por vir mais aguaceiro a qualquer instante.

A moça, depois de muito sacrifício, andando por cercas, dependurando-se nos velhos arames, encostada nas ramas até mesmo de urtigas cuja comichão era de matar qualquer um, chegou finalmente, após de atravessar com os pés no chão um verdadeiro lamaçal, a sua casa onde homens, meninos, velhos e outros mais retiravam a lama de dentro do domicílio.

--- Que tempo!. – dizia Adélia por o mal tempo que passou.

Dizia isso e tiritava de frio como uma anciã. A moça estava encharcada até a medula. E não parava de tremer. Para o desassossego dos que estavam na faina, ela agarrou de uma vassoura e ajudou a tirar a lama de dentro de sua casa. Eram mais de nove horas da noite. Todos na rua estavam fazendo o mesmo. Eram baldes de encher de água a tirar a lama coalhada. Meninos, até pequenos, faziam o mesmo serviço. E Adélia, com o cansaço e tudo, também ajudou a tirar a lama coisa durante até as primeiras horas da madrugada. O roncar de um trovão deixava os moradores em pânico. Via-se o lampejo de um relâmpago caído longe. Muito embora tal aviso inquietasse os moradores com a mais torrente chuva certamente por vir. E a luta continuou a noite inteira e pela manhã do dia seguinte, sem cessar. Alguns moradores, já pela manhã, dormiam em cima de colchões improvisados. Eles não agüentaram o acabado sono. Outros continuavam a trabalhar de forma incansável.

E nesse dia, mesmo deixando suja a sua moradia, tarefa de limpar as suas irmãs, pai e mãe, Adélia seguiu mesmo febril e com um longo sono por não ter dormido, para o seu ingrato trabalho. O sol brilhava forte e não havia sinal de nova tempestade tropical. No passar do caminho, uma família lamentava a morte de um rapaz. Ele consertava um bico de lâmpada quando, sem esperar, o fornecimento de luz foi restabelecido pela madrugada. O choque foi tamanho, que o rapaz não se desgarrou do fio de energia. Então, morreu na hora.

--- Virgem Maria! Como é que pode? – comentou Adélia.

--- Morreu mesmo. De uma vez só. E não morreu a mãe porque nós seguramos à velha. – comentou um rapaz talvez da própria casa do falecido.

Adélia se benzeu, demorou um pouco para ver se conhecia a vítima e depois partiu para o seu trabalho logo cedo da manhã.

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