quinta-feira, 11 de setembro de 2008

RIBEIRA - 110

ÍNDIA BRASILEIRA

No Armazém de Madeiras de José Leandro trabalhava um rapaz por nome de João Evangelista, bem mais conhecido pela alcunha de "Indio", por sua semelhança com o povo índio do Rio Grande do Norte. Eu perguntei uma certa vez porque o tratavam de "Índio" e ele me disse que era por tradição. Seu pai também era chamado desse modo e seu avô, ele era indio. Por isso, Joao Evangelista igualmente era dito como sendo índio. Na verdade, era mais fácil ele atender quando lhe chamavam por "Índio" do que por João ou por Evangelista.

Durante parte dos séculos XVII e XVIII aconteceu aqui, no Estado, uma das maiores resistências indígenas do pais que recebeu o nome de "Guerra dos Bárbaros", ou Guerra do Açú, por ter sido o epicentro a região do Açú e que depois se expandiu por vários Estados do nordeste. Por mais de quarenta anos, diversas lideranças indígenas lutaram pela terra, investindo contra o avanço colonial. Seus heróis anônimos: Janduí, Canindé, Antonio Paraupeba, Pedro Poti entre outros, não são lembrados, nem agraciados em sua bravura pelos livros de história. Os "negros da terra", como eram chamados pelos portugueses, passaram por um longo processo de miscigenação que fora imposto pelo rei de Portugal como forma de estratégia de desocupação da terra e de limpeza étnica. A concepção era a de que não sendo mais "indios puros", não tinham mais direitos às terras originais, sendo estas colocadas à disposição do projeto de expansão colonial.

Aliado a todo esse avanço dos empreendimentos da Colônia e ocupação territorial, a dispersão e o confinamento dos diferentes grupos indígenas pelos aldeamentos missionários faziam parte de planos estratégicos de desocupação definitiva do espaço nativo da região, pois "limpando" a presença indigena dos antigos territórios, havia motivos suficientes para se justificar e decretar a extinção e o desaparecimento indígena. A partir do século XIX, com a criação da Lei de Terras, a situação se agravou e definitivamente não havia mais lugar para o índio no Rio Grande do Norte. A sina que se tornou constante: as migrações, as fugas da escravidão, as perseguições. Negar as origens, através do ocultamento e da "invisibilidade", tornou-se uma defesa, a sobrevivência mínima garantida a custa do silencio imposto. Dessa forma, a assertiva de que os "indios do RN desapareceram" ou que "foram extintos" encontrou uma sustentação político-ideológica e viabilizou o processo sistemático da tomada de terras no Estado, mais presentemente pelo latifundio.

Outros grandes aliados nesse processo de ocupação fundiária foram os censos oficiais que, ao longo de décadas, transformaram o indígena em "pardo", ou seja, de acordo a concepção que vigora é a de que esta categoria abarca os mestiços em geral, portanto, não havia mais indígenas, apenas "resquicios" de indios. Toda essa afirmativa de pesquisa faz lembrar João Evagelista, o "Índio" que naqueles idos anos de 1956 não tinha carteira de trabalho, não tinha identidade, nem tinha certidão de nascimento. Falava manso, muitas vezes por gestos. Era um homem de certa forma desconfiado, não o encarava o seu patrão com firmeza e sempre que podia se enfiava no meio dos tacos (tacos se usava para por no chão) ficando em cima dos lotes, encabulado, acossado, sem motivo qualquer. Quando aparecia um freguês, ele vinha, sorrateiro e se postava atrás do homem sem que esse o notasse. Indio se comportava como um serviçal e não reclamava do dinheiro que fazia, como se tudo estivesse bom para ele. Para o seu patrão, fazia todo o mandado, desde pagar uma conta de água a ir em uma farmácia comprar um medicamento. Mesmo assim, dizia ""Indio" que nem sabia ler nem escrever. Ele trazia o troco da conta ou do medicamento e entregava ao patrão, saindo em seguida, como um relâmpago para o seu "esconderijo" habitual. Quem lhe pôs o nome de João Evangelista, dizia ele que tinha sido um padre do interior, no lugarejo chamado de Ipanguaçú, perto de Açu. Certa vez eu perguntei se ele era batizado, "Indio" não soube responder. Disse apenas que o padre fez "la um negócio" e ele não sabia o que "era aquilo". Certa vez, "Indio" arrumou o que tinha de levar em uma trouxa e desapareceu. Eu nunca ouvi falar nada ao seu respeito.Sumiu como uma flecha no mato. Fizera como seus antepassados.


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